Joan Miró

 

Janela do passado: “Matando cobra a pau nas enchentes do Córrego da Manteiga”


Daniel Santos Hercos (*)

 

 

Entra ano, sai ano, e as chuvas trazem sempre os mesmos estragos pelas ruas da cidade. Quando eu ainda era um projeto de gente, no tempo em que ainda não entendia as coisas da vida, águas corriam de enxurrada pela porta de casa sempre que chovia forte. Lembro que por vezes se juntavam como um rio que desce. Assim mesmo, pois na minha memória falhada e fragmentada o pequeno parece grandioso. Naquela altura e do meu angulo infantil lembro dos dias e das tempestades. Faz parte dos meus vícios burilar o passado, tentar por encanto mesmo quando parece estrago.

Morava no morro, aqui os morros costumam ser bons lugares de se viver. A rua de casa era calçada de pedra paralelepípedo, cruzava uma avenida que já sabia chamar Santos Dumont, o porquê do nome não me interessava, subia do outro lado, mas já não era mais minha, mesmo tendo o mesmo nome. Descobri mais tarde e continuei pensando igual. Na baixada era onde acontecia tudo, as águas desciam de todos os altos misturavam com o córrego que por ali inventava de passar pois na seca diziam que corria por baixo daquele pedaço de avenida dentro de um canal para desaguar bem lá na frente, quase no centro da cidade. Formavam um mar laranja forte que tentava subir por todos os lados e invadir nosso mundinho de brincar. Meus amigos da baixada, coitados! Ficavam presos mesmo depois da chuva.

Após a tempestade, ninguém corria ou brincava. Todos nós descíamos, queríamos ver o que o córrego e as descidas tinham deixado lá. O "Corguinho" se chamava "Manteiga", nome engraçado, seguia cercado de muretas desenhadas com cimento e acabava lá na frente no "Ribeirão da Laje" junto da avenida "Leopoldino". Nunca vi, mas dizem que tudo virava o mesmo mar. O que víamos? A morte empoleirada no nosso ombro, que espiávamos com nossos inquietantes olhos de coruja. Cenas de uma tragédia épica! Haviam cavalos, gado e cachorros mortos, carros capotados, e as cobras.... Estas merecem ser tratadas de forma separada, em cada esquina um grupo de pessoas com pau na mão, quase todas vivas. Meu sentimento era uma mistura de terror e curiosidade. Acho que nunca pude chegar perto. Afinal com tanta gente na avenida, não haveriam de faltar aqueles que nos reconheciam pelo nome de nossos pais e davam ordens para voltar de onde viemos.

As casas lá de baixo eram das mais bonitas da cidade. Mas, que pena dos moradores, era preciso que acontecesse um milagre para salvá-los e a santa mais próxima só na “Igreja da Medalha”. Se alguém quisesse ir rezar por lá ia voltar coberto de lama, se algo mais terrível não acontecesse, afinal o caminho era de terra, passava pelo brejo cheio de bicho e lá o “Córrego da Manteiga” estava como natureza com a estradinha pronta a desabar de qualquer lado. Morar ali na avenida só gente corajosa! Imagine ter a casa invadida pelo dilúvio sem ter como fugir.

Fecho a janela do passado. As tempestades são as mesmas. O córrego da manteiga sumiu do mapa, só ficou a Santos Dumont. As casas já não são as mais bonitas. O perigo e o risco de vida, estes continuam nas enchentes e no trânsito. Por sorte a santa ainda fica no fim deste trecho da avenida. Mas, “Minha Nossa Senhora”! Meu morro agora é outro. Aqui atrás da “Igreja da Milagrosa”. Onde no pé da rua passava a nascente do “Manteiga” hoje tem uma avenida tomada por buracos  sinistros que espreitam a tragédia e a morte. Nela o rapaz de moto faz malabarismo e o motorista de carro brinca de pula-pula. Assim, resignados, vamos sobrevivendo... Sem ter a quem recorrer... Sempre pedindo a Ela que rogai por nós. Mas sei que abusar da santa é pecado!

 

(publicado no Jornal da Manhã de 28 de fevereiro de 2008)

 

(*) Médico Psiquiatra da UFTM
Membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria

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