Remoção da Pedra da Loucura (1490) - Heronimus Bolch
(Acervo do Museu do Prado - Madri).

Nesta foto “Bolch” satiriza o crédulo tolo que se deixa explorar pelo esperto charlatão.


ELOGIO À LOUCURA

 


“Em todos os lados
a loucura fascina o homem”



 

por Daniel Hercos (*)


 


Publicado na Revista JM Magazine
n.º9, Março/2005

“Se começarmos a elevar nossos pensamentos a Deus... aquilo que nos causava prazer sob o título de sabedoria se revelará apenas loucura, e aquilo que tinha um belo rosto de virtude se revelará apenas debilidade” (Erasmo - Livro 1 - Capitulo 1 - Século XVI)

“A face exterior mostra a morte; olhem no interior, e lá há vida, ou inversamente. A beleza recobre a feiura, a riqueza à indigência, a infamia à glória, o saber à ignorância...” (Erasmo, Loc. Cit. XXIX, p. 53 / século VI)

STULTÍFERA NAVIS
"A NAU DOS LOUCOS"


Ao final da Idade Média ocidental, a partir do Séc. XV o vazio se estabelece por toda a parte. Aos poucos um fenômeno bastante complexo começa a se apropriar da herança da lepra (Encarnação do mal, objeto de medo; as mágicas renovadas de purificação e exclusão social). Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da renascença e nela logo ocupará um lugar privilegiado: é a “NAU DOS LOUCOS” (STULTÍFERA NAVIS); estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da “Remania” (Germânia) e dos “Canais Flamengos”. A obra de “Josse Bade” foi registrada em quadro de “Bolch” e teve existência real. Existiam barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra, os loucos tinham uma existência errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros, as vezes os marinheiros deixavam em terra mais cedo do que tinham prometido, levados a outras cidades e perdidos propositalmente nas feiras. Na verdade os loucos eram entregues aos marinheiros junto a donativos das comunidades. Frequêntemente cidades da europa viam essas “NAUS” atracarem a seus portos, algumas recebiam esses cidadãos acreditando que a navegação trazia purificação, poucos navios eram realmente simbólicos neste ofício do ritual. Havia peregrinação aos insanos da “Remania” em direção à Bélgica e do rio “Reno” até o “Jura” ao sul. Entretanto não nos enganemos, confiar os loucos aos marinheiros era com certeza evitar que eles vagassem na cidade: “entregue a incerteza da sorte parte o louco em sua barca louca é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Entregue ao rio de mil braços ao mar de mil caminhos a essa grande incerteza exterior de tudo solidamente acorrentado a infinita encruzilhada”. Outrora fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência. Por que da aliança entre a água e a loucura nasceu um dia esta barca? O imaginário da loucura substitui a morte e a água oferece a vida! Navegaram em desatino ao longo de toda uma era!

Adaptado da obra “História da Loucura” - Michel Foucault


(Acervo do Museu do Louvre - Paris)

Heronimus Anthonissen
van Aken Bolch
(1450-1516)

Ao longo dos séculos, a obra de Bolch tem suscitado as mais diversas interpretações. Em seu tempo, foi vista como altamente religiosa e exemplar; pouco depois de sua morte, começava a ser rejeitadas como absurda, indecorosa ou mesmo herética. A discussão se estendeu ao longo dos séculos e em tempos recentes os surrealistas aclamaram Bolch como “um freudiano antes de Freud”.

 

 

Entre o brilho e as trevas:
“E por uma estranha alquimia do cérebro seu deleite sempre se transformava em dor” (Edgard Allan Poe, Romance)


Ilustres enfermos:
“Histórias humanas e dramáticas repletas de genialidade e de altos e baixos emocionais, nestas páginas estão apenas alguns, já que não conseguiriamos reunir todos em uma unica galeria”.


Charles Baudelaire
(1821-1867)


“Entre Deuses e Demônios”

Poeta francês inovador e polêmico autor de “As Flores do Mal”, principal representante da escola simbolista européia. Sifilítico em pleno apogeu, prodruziu poemas, para revelar o momento que vivia. Acusado de obsceno e blasfemo, sentia que nacera para viver só e que a aflição seria sua eterna companheira. Em precariedade econômica desequilibrou-se emocionalmente no restante de sua existência.

“Ao meu lado, sem cessar, agita-se o demônio; flutua ao meu redor como o ar impalpável; aspiro-o e sinto que abrasa meus pulmões e os enche de um desejo eterno e culpado”.


• Sua vida foi tão sombria e sórdida, como seus versos!

 

   


“A Dor da Vida”

Seus poemas foram escritos em rigoroso segredo; a maioria inéditos até depois de sua morte. Suas alterações psíquicas eram tão pronunciadas e divergentes; que é possível estabelecer sob que influência emocionais escreveu seus versos mais famosos (entre os mais notáveis da América do sec. XIX).

“Morrer não dói muito: a vida dói mais. Mas morrer é coisa diferente, atrás da porta escondida...”

• Eremita, morreu em solidão e rodeada por suas palavras!

 


Emily Dickinson
(1830-1886)

   

Ernest Heminguay
(1899-1961)


“O último tiro”

Escritor e Jornalista recebeu o “Prêmio Nobel” e o “Prêmio Pulitzer”. Forte, vigoroso e esportivo teve uma existência tão aventureira e cheia de ação como a dos personagens de suas novelas. Em 1961 durante o tratamento de uma depressão grave (delirante), escolheu uma escopeta, carregou-a subiu até o vestibulo, apontou para sí mesmo e disparou. Dramático fim de uma existência atormentada.

“Ó nada nosso que estás no nada, nada seja o vosso nome, nada a nós o vosso reino e seja nada a vossa vontade, assim no nada como no nada.”

• Se não posso viver a minha maneira; então a minha existência é impossível!

   


“As mil mortes de uma vida”

Compositor e músico teve formação em Viena. Traumas de infância, medo permanente e carências afetivas fizeram com que seus estados de ânimo flutuassem periodicamente entre a euforia e a melancolia. Suas obras demonstram claramente esta condição: “A Canção do Lamento”, “Canções para os Meninos Mortos” e antes de morrer; “Viver por tí. Morrer por tí, Almschi!”

“Nenhuma de suas obras tocou-nos tanto o coração quanto esta (Sexta Sinfonia). Depois de tocá-la ao piano pusemo-nos a chorar os dois, descontroladamente.” (Alma Mahler - Esposa)

• De talento pouco comum, sua aflição existencial nunca se dispersou!

Gustav Mahler
(1860-1911)

   

Hector Berlioz
(1803-1869)


“As duas melancolias”

“Supremo arquiteto do gigantismo musical”. Tomado durante toda sua vida por estados de espírito inconstantes, segundo sua própria análise dois tipos de melancolia; uma ativa e dolorosa outra de letargia e ausência de sentimentos. Compôs grandes obras: “A Sinfonia Dramática de Romeu e Julieta”, “A Maldição de Fausto” e a “Ópera Benvenuto Cellini”.

“Existem dois tipos de spleen: um brincalhão, ativo, apaixonado, malicioso; e outro moroso e totalmente passivo, no qual só se almeja o silêncio a solidão e o esquecimento oferecido pelo sono.”

• Seu caráter sentimental e apaixonado levou-o a tentar o suicídio por um amor frustrado!

   


“Sua guerra e sua paz”

Artista atormentado, era levado de um extremo a outro por forças opressoras. Era capaz de escrever intensamente durante 8 a 10 horas diárias, perfeccionista criou obras monumentais como: “Ana Karenina” e “Guerra e Paz”.

“A idéia do suicídio surgiu com tanta naturalidade quanto a idéia que me surgira anteriormente de melhorar minhas condições de vida.”

• Há algum outro propósito na vida que a morte que me espera!

León Tolstoi
(1828-1910)

 


“Seu gênio e seu pequeno defeito”

Foi motivo de controversia, censura e difamação. Diz-se que depressivo, alcoolico e usuário de estimulantes; assumidamente homossexual, em poucos casos a história foi mais cruel. Escreveu poesia, conto e romance, mas seu talento mais hábil foi como manipulador da linguagem. Denunciado pelo pai de seu amante “Lord Douglas”; foi condenado por sodomia e passou anos na prisão. Entretanto a história criou frases e mais frases que pretendem perdoar “o pequeno defeito” de Wilde.

Na imortal carta “De Profundis” diz: “Renuncio ao amor de Lord Douglas, e me recrimino por have-lo estimulado a hábitos de dissipação e por distraí-lo de seu trabalho.”

• Morreu poucos anos após ser libertado, infernizado pelo alcoolismo!

Oscar Wilde
(1854-1900)

   

Robert Shumann
(1810-1856)


“Maravilhoso sofrimento”

Síntese do compositor romântico, seus altos e baixos psicológicos alternavam períodos de intensa criatividade com momentos de profunda desolação. Sua eterna irritabilidade paradoxalmente consagrou-o como um dos maiores músicos de todos os tempos.

“Luto para reconciliar com minha personalidade romântica desgarrada entre a alegria e a dor.”

• Morreu aos 46 anos por inanição que ele mesmo se impôs, foi o alívio definitivo para anos de tormento!

   


“Suas obsessões, seus amores e seus sonhos”

O mundo psiquico de Van Gogh era tão rico em matizes como o colorido de seus quadros. Em sua obra podemos vislumbrar seus estados de euforia e depressão mesclados com uma estranha compulsão emocional, conforme suas “crises nervosas” aumentavam, melhor pintava. Internado em Saint-Remy de Provence, em poucos meses pintou mais de 150 quadros.

“A pintura esta na minha pele... é um sol, uma luz, que eu só posso chamar de amarelo, porque não tem outra palavra... como o amarelo é lindo!... dizem, e creio, que é difícil conhecer a si mesmo, mas também não é fácil de pintar a si mesmo...”

• No último auto-retrato expressa a transformação interior que seu rosto sofreu, seus girassóis são substituidos por tons apagados que refletem sua absoluta solidão e grande melancolia!

Vicent Van Gogh
(1853-1890)

   

Virginia Wolf
(1882-1941)


“Entre as ondas”

Escritora britânica vivia angustiada entre a euforia e a melancolia, embora em seu estado normal fosse uma pessoa afetuosa, brilhante e socialmente encantadora. Um dos seus grandes méritos foi o desenvolvimento de técnicas literárias inovadoras para revelar a essência do feminino.

“A beleza do mundo é uma faca de dois gumes, um de risos e outro de angústia, e ambos partem nosso coração em dois.”

• Numa breve nota a seu esposo explica o seu suicídio: “Queridíssimo sei que estou enlouquecendo outra vez. E desta vez não me recuperarei... Não posso mais lutar!”

   


“Seus excessos: sofrimento e felicidade”

As flutuações de seu estado emocional jamais constituiram obstáculo ao processo de criação de obras plásticas ou literárias. Ao contrário enriqueceram seu estilo e fizeram com que trancedesse a história como um homem de mente aguda e visionária.

“Todas as religiões são uma, e não existe a religião natural. Mantenho-me fiel a todas as formas de igualdade seja social, política ou sexual. Viva o reino da felicidade e liberdade universais”

• Morreu triste e desiludido porque nunca obteve o reconhecimento que esperava e jamais pode superar a penúria economica!

Willian Blake
(1757-1827)

   

Yasunari Kawabata
(1899-1972)


“Erotismo e morte andam lado a lado”

Prêmio Nobel de literatura em 1968, o escritor japonês criou um obra bela e melancolica, na qual morte e erotismo andam sempre lado a lado. No Brasil duas obras estão disponíveis: “O País das Neves” e “A Casa das Belas Adormecidas”.

“Por mais admirável que seja o suicida está longe do patamar de um santo. Eu não adimiro nem tenho simpatia pelo suicidio”

• Quatro anos depois da frase proferida acima abriu o gás de cozinha e se matou; não deixou sequer um bilhete para explicar o gesto!


Íntimo, Pessoal e Intransferível

 

Decidi encerrar este artigo com uma visão crítica, com todos os riscos que esta condição implica, uma vez que não sou escritor de formação. A postura diante do inesperado; do diferente, raramente é de atenção, abertura e escuta. Pouco nos interessa os motivos, o bem, as angústias e buscas, direitos e razão de quem infringe as regras; o ser humano geralmente se volta para à acomodação e o egoísmo. Sentimos medo solidão, raiva, mesmo que imprecisa, nem sabemos do quê ou de quem. ”
O outro é sempre uma ameaça, não uma possibilidade de afeto ou alegria. Preferimos então rotular o enfermo. O homem por vezes parece um iceberg, um imenso bloco de gelo desgarrado e cercado de isolamento defensivo por todos os lados, frio e compacto em seu interior e continuamente corroido na superfície externa. A enfermidade que despoja a memória, a beleza e a graça não deve continuar na orfandade. Acompanho pessoas que em qualquer altura tentam se transformar, recomeçar; gostaria de ficar ainda mais otimista! O bom e belo existem no torvelinho da violência física ou emocional, na poeirama das aflições mais variadas, para ser apreciados e cultivados: por sua causa diariamente a gente devia agradecer a Deus. A loucura geral se espalha em forma de burrice ou impertinência. Fico a pensar em que eu escapo disso, em que sou cúmplice e participante.
Dentre os tratamentos para os doentes mentais, existe um que deve ser levado mais a sério:
“O tratamento da sociedade em relação ao paciente; o maior transtorno é claramente a falta de amor no pecado da intolerância ao diferente.

...Houve um tempo nos idos anos 70, que vagões de passageiros (aqueles de terceira classe) chegavam lotados de “indigentes”, quase na totalidade doentes mentais a Uberaba. Vinham sobretudo de duas grandes cidades do interior paulista, provavelmente também reunidos de outras localidades do estado. Desenbarcavam na estação ferroviária e de lá perambulavam pelo restante dos bairros, muitas vezes eram acolhidos por famílias outras num certo hospital psiquiátrico de nome “Paulo Lacerda”, hoje extinto; alguns simplesmente moravam nas ruas como pedintes. O fato é que a situação ocorria como um processo quase que exclusivo desta cidade (de forte cultura filantrópica e religiosa). Será que os responsáveis pelo envio desses enfermos; acreditavam que a peregrinação que transpunha o grande rio e findava na terra das águas claras e brilhantes (Y-beraba) poderia trazer a sanidade mental de volta a estas pessoas; ou simplesmente despejavam para fora da “Muralha do Rio Grande” e saneavam o suposto mundo dos ricos e saudáveis que viviam do outro lado, entregando essas pessoas à própria sorte?...

 

Psiquiatra Daniel Hercos - publicações selecionadas
WebDesign por Paulo Henrique Lopes