O LEGADO DE
NOSSAS VIDAS

 
 

Daniel Santos Hercos(*)



Os anos se passam, a velhice chega, descobrir-se nesse momento requer coragem, deflagra-se uma série de sentimentos negativos: raiva, culpa, depressão e, sobretudo, medo. Saber que a expectativa de vida cursa irreversível e que a contabilidade dos aniversários começa a se encerrar requer lucidez! Mesmo para quem tem certeza de que a morte é apenas uma passagem da vida material para o outro mundo recompensaria se o fim fosse adiado, afinal, sempre temos mais planos.
De que morremos? Ora, não importa a causa primária, o empurrão final é sempre o mesmo: falta de oxigênio no cérebro! É possível atenuar a angústia da morte?

Civilizações inteiras foram erguidas em nome desse impulso, mas cada ser humano tem uma batalha pessoal e intransferível a ser travada quando chega a sua hora. A fé religiosa costuma ser de grande valia, mas, por si mesma, não garante tranqüilidade nem aceitação do inevitável; os encantos celestiais podem parecer nada tentadores! Diante da morte, o maior consolo talvez seja poder fazer um balanço positivo da vida que estamos prestes a deixar. “Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu te espantes, a vida toda é um aprender morrer” (Sêneca - filósofo romano).

A vida deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos! Para isso aprendemos a pensar muito cedo, entretanto, adotamos o lema: “Parar para pensar, nem pensar”. Precisamos, sim, buscar nossa essência, por baixo das águas que inundam nosso cotidiano. Parar, olhar, escutar, observar o mundo exterior e o de dentro; pois a vida há de rolar por cima da gente, para tornarmos poeirinha inútil, se assim não fizermos!
Falo de viver! Pois a alma pode brincar de esconde-esconde entre as folhas. Que gostoso expiar o céu fora da janela, contar as estrelas, ouvir música, ver televisão, conversar com os amigos, observar as crianças brincarem, perceber a chuva, o sol, as flores e todos os odores da natureza! Não é preciso realizar nada de espetacular, nem mesmo ser brilhante, importante ou admirado!
Para que nossa existência valha a pena é preciso amar, ser amado e amar-se. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Ter esperança, qualquer esperança!



(*) membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria

Publicado no Jornal da Manhã, em 04/12/2005 - Ano 34, n.º9998


Psiquiatra Daniel Hercos - publicações selecionadas
WebDesign por Paulo Henrique Lopes